quarta-feira, 19 de março de 2014

RG DE PRETO. Texto DE Luh Souza



A cada fato acontecido vão se somando às lembranças do que já foi notícia e doeu tanto quanto, porém esquecidos diante de um novo fato. O racismo nosso de cada dia nos deram esta semana, na figura da mulher preta, mãe, trabalhadora, favelada, assalariada e invisível. 

Somos todos invisíveis até virarmos notícias e não são notícias de graduação, premiação, promoção ou aumento de salário, este último então, vimos crescer no Rio um levante de assalariados de esmagadora cor preta e não houve quem pudesse dizer que estávamos vendo pelo em ovo ou que víamos racismo em tudo. Os garis do Rio de Janeiro, em luta por seus direitos trabalhistas, deram 
125 anos de aula de História do Brasil sem terem tido a intenção. Com eles, pudemos até imaginar a revolta de escravizados haitianos e um pouco mais além. Só não aprendeu quem não quis.

Recentemente recebi a notícia que, alguns atores mirins fizeram propaganda para uma marca de refrigerante famosa e caíram em prantos quando o comercial foi ao ar; evidentemente foram limados da peça publicitária. Quem quer ver crianças negras em comerciais de fraldas, iogurtes, loja de brinquedos? São todos filhos de Claudias e Januários. São meninos Vinícius ou garotinhos Juans. A cara 
dos filhos dos garis ou dos coveiros que ajudam a enterrar mais pretos que brancos. Jovens brancos só morrem mais que jovens negros em acidentes de carro e não é preciso ser inteligente pra adivinhar a causa.

Não dá pra citar todos os nomes de pretos amarrados em postes, linchados e em sua maioria inocentes. Não dá pra citar todos os que foram humilhados na porta giratória dos bancos, como foi o caso de Marina Silva (Nina), esta semana no Itaú Personnalite. Não dá pra citar todos os garotos que receberam um tiro e que não tiveram tempo de perguntar: "Porque o senhor atirou em mim?" Também não dá pra citar quantos negros com a notinha de compra nas mãos e sendo execrados publicamente por roubo em supermercados e lojas. Não dá pra citar quantos negros foram confundidos com bandidos, desaparecidos ou mortos. Quantos impedidos de entrar e sair de escola, faculdade, festa, trabalho, parados no trânsito só por serem pretos e por isso mesmo, suspeitos em primeiro grau.

Claudia nos faz lembrar de Amarildo. Se ela não tivesse sido arrastada e alguém filmado, é possível que seria mais uma família a não ter o direito de chorar a sua morte. Me fez lembrar do ator Vinícius Romão que apesar de todas as identificações de trabalhador, honrado, um cidadão, tinha apenas um documento de identificação ocular: Ser preto. Claudia nos arremessa ainda mais longe; no caso do dentista Flávio Ferreira Sant´Anna, de 28 anos, morto pela polícia que o confundiram com ladrão e constatado o engano, colocaram em suas mãos uma pistola 357 e em seu bolso os documentos do comerciante que havia acabado de ser assaltado e que confirmou a versão mentirosa da polícia dizendo que ele só apontou o dentista porque "ele era negro como o ladrão e também vestia camiseta preta". Como Claudia não nos lembrar Januário, o negro que ousou comprar um carro importado e ainda fazer compras em um supermercado? Foi espancado, teve o maxilar quebrado e a polícia chamada, ao invés de defendê-lo, ainda perguntou-lhe em tom de afirmação "Você tem cara que tem pelo menos umas vinte passagens pela polícia, não?" Aliás, ele tinha 'cara' de negro, era esse o crime de Januário. Claudia também nos lembra do garotinho Juan, de apenas 11 anos de idade, morto em uma operação policial e numa tentativa de esconder o crime, policiais jogaram seu pequeno corpo às margens de um rio em um município vizinho, bem longe de onde ele morava. 

Claudia nos faz lembrar outros casos que num texto só não caberia. Talvez devêssemos montar uma enciclopédia dos casos de racismo e teríamos de exigir do estado uma biblioteca em separado, tamanho o volume de dados que teríamos disponíveis. E os casos que a mídia não evidencia? E das famílias que não tem força, voz, e são completamente invisíveis pela sociedade e que não ficamos sabendo? Dos casos que não acabam em tragédia, porém humilham e marcam todos nós para o resto de nossas vidas?

Em nosso documento de identidade poderia constar muitos nomes e sobrenomes, afinal, eu sou todos eles, nós somos todos negros, eles são nós mesmos, eu sou você e você sou eu. Pode ser qualquer um de nós, amanhã, daqui um pouco ou neste exato momento. O que será dos filhos de Claudia, do Januário e do Vinícius quando ele os tiver? Juan e Flavio não puderam ter família. 

Isso não quer dizer que gostamos de ver as famílias de policiais chorarem a morte de seu ente querido, mortos em cumprimento do seu dever. Somos solidários e sofremos igualmente. Não questionamos O Policial, e sim,a corporação. Quando um policial veste a farda, ele deixa de ser branco ou negro e passa a agir de acordo com a mentalidade da corporação que o treinou, e basta ver a Cartilha da Policia distribuída para a população, tempos atrás, dando conta de um desenho com a figura de dois homens negros e pobres portando arma de fogo e assaltando um homem branco.

Não há números em nossa carteira ou documentos. Não somos cidadãos como os outros. Nossa identificação é uma cor: preta!

Luh Souza 

Caso de Marina (Nina) Silva, no Itaú.

BLAHKA TAO